Espaço do leitor


06/04/2014 | O racismo e as relações de trabalho.

por: Ana Cristina Pinto de Oliveira - Advogada
OAB/RS 71.630

Em tempos modernos o racismo deveria ser um sentimento erradicado, contudo, temos assistido nos mais diversos meios de comunicação, reiterados atos desse gênero. Tais atos, além da punição penal, têm sido objeto de reprimenda no seara das relações de trabalho, situações mais habituais do que imaginamos e que são passíveis de indenização.

A legislação brasileira possui dispositivos estabelecendo proteção contra atos racistas, tais como o artigo 5? da Constituição Federal, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, por sua vez, o inciso XLII, do mesmo artigo, dispõe que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível. O artigo 7º do mesmo diploma legal, em seu inciso XXX, proíbe a distinção salarial e critérios de admissão no tocante a sexo, idade, cor ou estado civil.

O racismo é definido como o sentimento de superioridade biológica, cultural, moral de determinada raça ou povo ou grupo social considerado como raça.  Entretanto, mesmo em pleno século XXI, com tantas leis criminalizando condutas racistas, existem pessoas que cometem atos discriminatórios e preconceituosos, o que deve ser rechaçado com veemência tanto pela sociedade quanto pelo judiciário.

Giza-se que, especialmente no local de trabalho, deve-se proporcionar aos trabalhadores segurança e autoconfiança no exercício de uma vida digna, em obediência ao dever de urbanidade do empregador e da dignidade humana.

Para melhor esclarecer, segue transcrito julgamento exarado pelo E. Tribunal do Trabalho do Rio Grande do Sul, que expressa com exatidão o acima mencionado:

Acórdao do processo 0001568-32.2012.5.04.0022 (RO)

Data: 08/08/2013 Origem: 22ª Vara do Trabalho de Porto Alegre Redator: ANDRÉ REVERBEL FERNANDES - Participam: CARMEN GONZALEZ, MARÇAL HENRI DOS SANTOS FIGUEIREDO - PROCESSO: 0001568-32.2012.5.04.0022 RO - Sumaríssimo

ACÓRDÃO

por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário da reclamante para acrescer à condenação o pagamento de indenização por danos morais no importe de R$ 3.000,00. Valor da condenação que se acresce em R$ 3.000,00. Custas acrescidas de R$ 60,00.

RAZÕES DE DECIDIR

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS

A reclamante busca a condenação da reclamada ao pagamento de indenização por danos morais, alegando a prática de ato de racismo pela sócia da reclamada, Letícia Castanho dos Santos. Assevera que o empregador tem o direito de dirigir a prestação pessoal do serviço, mas jamais a pessoa do trabalhador, que não se despe de sua condição de pessoa natural sujeita a direitos e deveres na ordem civil, entre os quais o de denunciar a prática de ato de racismo. Entende que a prova testemunhal produzida é suficiente para comprovar a ocorrência de racismo e discriminação, havendo responsabilidade do agente pela ofensa ao bem jurídico protegido. Sublinha que a testemunha da autora afirma em seu depoimento que não lembra se as ofensas ocorreram na presença de Cristina (testemunha convidada pela ré). Refere que o depoimento da testemunha convidada pela ré é tendencioso e de má-fé, bem como que deveria ter sido acolhido com ressalvas, tendo em vista o seu claro intuito de favorecer a demandada. Diz que a agressividade constatada na conduta da empregadora caracteriza a sua ilicitude. Acrescenta que é evidente o nexo causal entre o ato praticado pela reclamada e o abalo moral sofrido pela demandante. Entende que deve ser reconhecido o dever de indenizar. Invoca o art. 5º, inciso X, da Constituição Federal e os arts. 186, 187 e 927 do Código Civil de 2002.

Com razão.

O Direito do Trabalho nasceu para que se assegurasse a dignidade do trabalhador. Este bem personalíssimo, se for atingido, merece reparação. Amparam o direito do empregado à indenização por dano moral os artigos 1º, inciso III, e 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, bem como os artigos 186  e 927 do Código Civil, estes aplicados ao direito do trabalho por força do art. 8º da CLT. Tal indenização é cabível quando, em razão da execução da relação de subordinação existente no vínculo de emprego, a empresa, mediante abuso ou uso ilegal do seu poder diretivo, atinge bens subjetivos inerentes à pessoa do trabalhador. Ensina Maria Celina Bodin de Moraes (Danos à Pessoa. Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003):

 

Constitui dano moral a lesão a qualquer dos aspectos componentes da dignidade humana - dignidade esta que se encontra fundada em quatro substratos e, portanto, consubstanciada no conjunto dos princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade. Circunstâncias que atinjam a pessoa negando a ela a sua essencial condição humana serão consideradas violadoras de sua personalidade e causadoras de dano moral a ser reparado.

Dessa forma, a doutrina define o dano moral como o decorrente de ofensa à honra, ao decoro, à paz interior de cada um, às crenças íntimas, aos sentimentos afetivos de qualquer espécie, à liberdade, à vida e a integridade corporal.

Entende-se que a reclamada abusou de seu poder diretivo em relação ao trabalho realizado pela reclamante, incidindo a hipótese do art. 186 cumulado com o art. 927, ambos do Código Civil. Com efeito, a prova  produzida no feito demonstra que a reclamante sofria discriminação racial por parte de Letícia Castanho dos Santos, sócia da empresa reclamada. A testemunha Ivana Seitz, ouvida a convite da reclamante, informa que: "presenciou várias vezes a Sra Letícia chamar a reclamante Suelen de escrava; que era de brincadeira ou na ótica da testemunha, de forma irônica; que chamava a autora para comparecer próximo com expressões do tipo "venha aqui mocamba, escrava" vou pegar o chicote; que não sabe precisar quantas vezes esse comportamento se repetiu, mas foi por mais de 03 oportunidades; que a reclamante disse que a única pessoa que achava graça desta brincadeira era Letícia; que isto ocorre da metade do contrato da depoente para a frente; que Letícia falava estas expressões na frente de todos os empregados; que havia em torno de 06 empregados; [...] que o fato acima narrado de ofensas de Letícia a autora ocorreu no refeitório e no corredor; que não sabe ou pode lembrar se essas ofensas foram na frente de Cristina, auxiliar de serviços gerais, que igualmente ajudava em sala de aula" (fls. 30-verso/31, grifa-se). Muito embora a testemunha convidada pela ré, Rosalina Cristina Ribeiro de Lima, afirme que "Letícia nunca fez qualquer brincadeira ou chamou a reclamante de escrava ou qualquer outra expressão neste sentido", bem como que "isto nunca ocorreu com qualquer funcionária" (fl. 31), não é crível que a depoente acompanhasse a sócia da reclamada durante todo o expediente de trabalho, não tendo, portanto, condições de negar, categoricamente, a ocorrência destes fatos. Deste modo, conclui-se que a reclamante se desincumbe a contento de seu encargo processual e comprova os fatos constitutivos do seu direito, nos termos do art. 818 da CLT e art. 333, inciso I, do CPC.

O comportamento adotado pela sócia da empresa reclamada viola o dever patronal de agir com urbanidade em relação aos empregados, nos termos do artigo 483, "e", da CLT, que, apesar de tratar de hipótese de rescisão indireta do contrato de trabalho, também pode ser utilizado como orientação acerca da conduta do empregador no curso contratual. Além disso, o comportamento evidencia nítido caráter racista, repudiado pela Constituição Federal. A empresa é objetivamente responsável no caso sob análise, por força do art. 932, III, do Código Civil.

Dessa forma, entende-se suficientemente comprovada a existência de eventos danosos capazes de ensejar a condenação da reclamada ao pagamento de indenização por dano moral.

No que tange ao valor a ser indenizado, é necessário que se leve em conta o princípio da razoabilidade, bem como as condições do ofendido e da ofensora, e a reprovabilidade da conduta praticada. Como bem destacado por Cavalieri Filho:

Creio que na fixação do quantum debeatur da indenização, mormente tratando-se de lucro cessante e dano moral, deve o juiz ter em mente o princípio de que o dano não pode ser fonte de lucro. A indenização, não há dúvida, deve ser suficiente para reparar o dano, o mais completamente possível, e nada mais. Qualquer quantia a maior importará enriquecimento sem causa, ensejador de novo dano.

(...) Para que a decisão seja razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida seja adequada aos motivos que a determinaram; que os meios escolhidos sejam compatíveis com os fins visados; que a sanção seja proporcional ao dano. Importa dizer que o juiz, ao valorar o dano moral, deve arbitrar uma quantia que, de acordo com o seu prudente arbítrio, seja compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do causador do dano, as condições sociais do ofendido, e outras circunstâncias mais que se fizerem presentes. (Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 90).

Assim, levando em consideração as questões fáticas (muito curta duração do contrato de emprego - de 28.08.2012 a 10.10.2012), bem como a capacidade econômica da parte ofensora e ainda o caráter punitivo ligado à indenização, que tem por finalidade evitar que outros empregados sofram os mesmos prejuízos que a reclamante, entende-se que a verba indenizatória deve ser arbitrada na quantia de R$ 3.000,00, porquanto adequada aos parâmetros precitados.

Dá-se provimento ao recurso da reclamante para condenar a reclamada ao pagamento de indenização por danos morais no importe de R$ 3.000,00.

Não é demais lembrar que a valoração do dano pode variar de acordo com a situação apresentada e o porte financeiro do ofensor.

Por fim, na esfera criminal, foi introduzido no Código Penal o parágrafo 3º ao artigo 140, que trata do crime de injúria, com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa. Se a injúria for praticada com referência à raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é agravada, passando à reclusão, de um a três anos e multa. E a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei nº 9.459/97, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Assim, todos os trabalhadores que se encontram em situação de tratamento racista no ambiente de trabalho devem procurar suporte jurídico especializado para ter seus direitos garantidos. O ato de racismo enseja também a rescisão do contrato de trabalho por culpa do empregador, além de indenização moral.


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