Fábio B. Salvador


08/08/2017 | Resposta de um burocrata a Ives Gandra e Percival Puggina

Recentemente, o professor Ives Gandra publicou no blog do Percival Puggina um texto intitulado “A Ditadura dos Burocratas”, cuja primeira frase é uma obviedade cheia de significado: “A máquina estatal brasileira é gigantesca”. Trata-se de mais um artigo afirmando a união da tal “burocracia” (ou seja, as diversas categorias de funcionários públicos) contra os empresários. Como um grande exército do mal, decidido a quebrar o Brasil para, no processo, viver sem trabalhar.

Vou falar daqui, do outro lado. Na concepção destes senhores, sou um burocrata, cercado de burocratas, aqui, no seio da burocracia. Tenho carimbos sobre a mesa e tudo.

Ninguém gosta da complicação, da lentidão, do peso da máquina pública brasileira. Ninguém. Nem mesmo nós, que aqui estamos e que dela vivemos (da máquina, não da lentidão).

Porque o fato de lidarmos com um sistema que visivelmente não tem lógica alguma impede que vejamos sentido naquilo que fazemos. Quando falo em “sentido”, não é algo profundamente filosófico a respeito de felicidade no trabalho. Não. Estou falando de algo bem banal.

Eu tenho amigos e parentes que são mecânicos. Eles lidam com coisas que têm lógica: a peça A empurra a peça B, produzindo o efeito X. O mesmo ocorre com gente da área da eletrônica. Eu trabalhei por muitos anos como programador, e era compreensível que um mais um fossem dois, ou que o comando Y produzisse o efeito Z.

O trabalho do funcionário público é cumprir as normas legais. É assim que fazemos nosso papel de engrenagens nesta grande máquina que é o Estado. O problema é que, no Brasil, a máquina foi projetada de forma caótica. Se algum deputado, por motivos inimagináveis, criou uma regra lá nos anos 1960 que foi modificada por um outro cara nos anos 1980, e daí fizeram uma regra de exceções para algum setor da economia em 2010, o resultado é uma colcha de retalhos legal.

Além de ilógicas, anti-intuitivas, nossas normas – seja na área tributária, aduaneira, trabalhista – têm o costume doentio de mudar. São regras quase sempre mal pensadas e, portanto, eternamente precisando de remendos. Azar do servidor, que precisa fazê-las serem cumpridas.

Pode-se dizer (como diz o senhor Gandra) que nossa média salarial é maior do que a do setor privado. Mas essa é a mágica das médias: elas não mostram que há um pequeno número de marajás puxando o cálculo para cima, e uma imensa massa se virando como pode.

Pode-se falar em estabilidade – ela é relativa, mas existe. Protege os bons funcionários da ação da politicagem, mas protege os maus em sua preguiça e corporativismo. A gente sabe.

Na prática, somos soldados (uns querendo lutar pra valer, outros nem tanto) em um exército que marcha seguindo um plano que às vezes não tem nexo – e vira e mexe, guiados por generais notoriamente incompetentes ou desonestos.

É uma lenda pensar que "os burocratas amam o sistema como ele é". A gente não faz o sistema: aplica-o, se quiser manter o emprego. Com dois filhos pra criar, é o que faço. Milhões fazem. “Por que não se demite e não empreende?” - porque moro no Brasil, oras.

Quem cria as regras desse jogo são os burocratões do topo (esses, que puxam a média salarial para cima), e os políticos. A nós, na base da pirâmide, resta o papel de vilões corporativistas aos olhos de certos colunistas, e a tarefa de lidar com a compreensível confusão e revolta do contribuinte.

O Brasil é um barco meio a deriva, que vira e mexe dá uma afundada. O desespero que vocês passageiros sentem também acomete a tripulação. E os comandantes não dão a mínima para nós, nem para vocês. A cada naufrágio, só eles saem sempre rindo da nossa cara.


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