Mafalda Orlandini
31/10/2016 | Sem consenso III
Quando o Ricardo transferiu meu último comentário para o site dele, ele me questionou se eu havia esquecido a outra jovem estuprada que conviveu conosco durante muitos anos. Claro que não! Lembro muito bem e já observei que as jovens de hoje, quando estupradas, recebem o mesmo tratamento preconceituoso que a Ivone recebeu na década de sessenta. Lamentavelmente, a culpa e o trauma ficam com a pessoa estuprada para toda a vida.
Ivone entrou em minha vida quando bateu a minha porta, pedindo emprego. Simpatizei com a guria e mandei-a entrar para conversarmos. Enchi-a de perguntas. A primeira coisa foi saber quem a mandara. Fora o zelador do prédio, que também não a conhecia. Viera a esmo porque precisava trabalhar e era o seu primeiro emprego. Respondia a tudo rindo. Dizia saber cozinhar, lavar e passar roupa. Gostava de crianças e poderia dormir no emprego ou não. O salário estava dentro do previsto. Maravilha para uma professora viúva com dois filhos para atender e que trabalhava pela manhã no Rosário e à tarde e à noite em Cachoeirinha e Gravataí.
- Negócio fechado, podes vir amanhã bem cedo.
Meus filhos se surpreenderam por eu admitir uma empregada sem referências, mas, naquele tempo, não havia riscos maiores. Ela era alegre, brincalhona e o riso logo os conquistou. Jogava, brincava, cantava, contava piadas e fazia um feijãozinho que logo ficou famoso.
A Ivone tinha alguma coisa fora do normal que, só com o tempo, fomos percebendo. Tinha um braço meio paralisado. Era semianalfabeta. Esteve vários anos na escola e não aprendeu a ler. Invertia os números do telefone, quando tinha que anotar. Uma vez, me deu um número para eu ligar e não dava certo. Depois de uma certa confusão, me disse que era do seu Passarinho. Então dei risadas porque era um recado do Canarim, um aluno que se preparava para um concurso e vinha estudar em minha casa.
Meu filho mais velho não se conformava que ela não soubesse ler. Depois de muito esforço, ele conseguiu que ela conseguisse ler as manchetes, as “letras grandes”, pois sua dificuldade era inverter as letras. Cheguei à conclusão que ela era portadora de dislexia.
Queria muito tirar a carteira de identidade, mas desejava assinar a sua carteira. Então eu criei uma assinatura do jeito que ela gostaria de ter. Passava copiando até o dia em que soube assinar sem copiar. Veio para casa muito feliz com a bendita assinatura feita sem copiar.
Há muitas histórias hilárias para contar. Só mais uma. Um dia quebrou o copo do liquidificador e me perguntou o que deveria fazer. Joga fora, eu disse. Quando ouvi que o lixeiro estava passando, perguntei se não havia esquecido. Falou-me que havia jogado tudo fora como eu mandara. Correu para corrigir o malfeito, mas era tarde; foi no momento em que vimos o saco voar para dentro do triturador.
Um dia, ela me pediu para sair de tarde com a mãe para ir à Delegacia. Quis saber por quê. Foi aí que ela me contou como fora surpreendida na própria casa, agredida pelas costas, e, desacordada, fora estuprada. Não pode ver o agressor. Sua mãe denunciou e, de tempos em tempos, ela era chamada para ser questionada. Era maltratada, debochada e teimavam em fazer perguntas horríveis porque não acreditavam que ela não soubesse quem era o agressor. Diziam que estava escondendo um namorado, que teria medo de denunciar um parente ou um vizinho e, por fim, insistiam em que deveria ter sido o próprio pai. Era sempre uma tortura, mas a mãe insistia em levar a investigação adiante. Não é de admirar. Aliás, ainda hoje, quando uma mulher brasileira é estuprada a cada 11 minutos (segundo registros oficiais) um promotor gaúcho foi capaz de agredir verbalmente uma menina estuprada por um membro da sua família.
Claro que nunca se descobriu, era assim que investigavam esses casos. Apenas a Ivone era diferente de outras mulheres. Nunca se deu conta da enorme violência de que fora vítima. Viveu feliz dentro de suas possibilidades. Adorava Carnaval. Dançava e tocava pandeiro com perfeição. Ficava orgulhosa, quando era disputada pelas escolas de samba de Porto Alegre para fazer “aquele pandeiro falar”. Tanto é que a única herança que deixou ao morrer, aos trinta e poucos anos, foi um “pandeiro de prata” que recebeu de presente de uma escola e foi disputado pelos sobrinhos. Saudades, Ivone querida.
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